A imposição do neoliberalismo na América Latina tem sido um processo complexo e multifacetado, iniciado de maneira mais explícita com as reformas estruturais da década de 1980 e 1990. Os ajustes estruturais promovidos por organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial resultaram em uma reconfiguração das economias locais, com a privatização de empresas estatais, a desregulamentação do mercado e a redução de direitos trabalhistas (Sader, 2016). Essas reformas não apenas transformaram as economias, mas também alteraram a subjetividade dos indivíduos, cujas vidas passaram a ser mais diretamente orientadas pelas demandas do mercado.

No entanto, essa imposição neoliberal na América Latina ocorreu em um contexto marcado pela desigualdade histórica, colonialismo e uma história de exploração que caracterizam a formação social e econômica da região. Foucault (2008) já apontava como o neoliberalismo, enquanto tecnologia de governança, implica uma subjetividade que é gerida através do mercado. No entanto, na América Latina, esse processo de subjetivação neoliberal foi especialmente violento, pois envolveu um desmantelamento de direitos sociais conquistados durante períodos de democratização e uma intervenção externa que minou as possibilidades de uma autonomia econômica e política para muitos países da região.
O neoliberalismo, ao incidir sobre a América Latina, não apenas destruiu as redes de proteção social, mas também fomentou o individualismo e a competição de maneira exacerbada. Esse processo de subjetivação neoliberal se concretizou, em grande parte, através de uma fragilização do trabalho e a imposição de condições de trabalho precárias, especialmente em países como o Brasil, Argentina, México e Chile, onde a informalidade e a exploração laboral se tornaram uma norma (Harvey, 2014). A precarização do trabalho, a ampliação das relações de subordinação e o aumento da insegurança no mercado de trabalho geraram uma subjetividade vulnerável, em que os indivíduos se veem como empresários de si mesmos, mas sem os recursos ou o poder para sustentar essa autonomia no longo prazo.
Além disso, o precariado latino-americano, uma classe social crescente que sofre com a instabilidade laboral e a falta de direitos, passa a representar um novo tipo de sujeito neoliberal, que se vê marcado por um futuro incerto, vivendo na autogestão da pobreza e na falta de possibilidades de ascensão social (Standing, 2011).

Subjetividade Emancipatória e Movimentos Sociais na América Latina

Em resposta ao impacto do neoliberalismo na subjetividade e na vida social, a América Latina tem sido um berço de movimentos sociais que têm buscado alternativas emancipatórias. Esses movimentos não apenas questionam as políticas neoliberais, mas também oferecem visões de subjetividade coletiva e solidária, em contraposição à subjetividade neoliberal, pautada no individualismo e na competição.
A subjetividade emancipatória na América Latina está profundamente entrelaçada com a ideia de solidariedade coletiva e luta social. O trabalho, nesse contexto, deixa de ser uma mercadoria, e a busca por um trabalho digno é vista como um esforço de transformação social. Os movimentos populares e indígenas, como aqueles que protagonizaram as revoluções na Bolívia e no Equador, e as mobilizações em países como o Brasil, Argentina e Chile, trazem à tona a necessidade de uma subjetividade coletiva que recuse a lógica neoliberal e que busque, ao contrário, o bem-estar comum (Dussel, 2008).
Além disso, o conceito de cuidado e de interdependência é central para a formação dessa subjetividade emancipatória. A ideia de cuidado (não apenas no campo das relações pessoais, mas no campo político e econômico) tem sido resgatada por movimentos feministas, indígenas e de trabalhadores que, na sua luta, defendem a dignidade e a humanidade de todos os sujeitos. A subjetividade emancipatória na América Latina se constrói a partir de uma ética de cuidado coletivo, onde a solidariedade se torna a base para a criação de novas formas de organização política, social e econômica (Foucault, 2008).
A subjetividade emancipatória, então, não apenas desafia as condições de trabalho e a precarização impostas pelo neoliberalismo, mas também propõe uma nova organização do trabalho que não se baseie na exploração e no lucro, mas na coletividade, na cooperação e no bem-estar comum. Isso implica uma concepção de trabalho que não seja apenas fonte de identidade individual, mas um meio de transformar as relações sociais, combater a desigualdade e fortalecer as redes de apoio mútuo.

A Resistência e da Transformação Social

O contraste entre as subjetividades neoliberal e emancipatória na América Latina se torna ainda mais evidente quando se observa o papel das práticas de resistência. Desde a resistência ao golpe de Estado no Brasil em 2016 até as manifestações em massa no Chile em 2019, passando pelas mobilizações feministas e pelos protestos de movimentos sociais no México, é possível perceber como os indivíduos e coletivos latino-americanos têm se apropriado da subjetividade emancipatória para resistir à imposição do neoliberalismo e buscar novas formas de organização política e social (Harvey, 2014).
Foucault (2008) argumenta que a resistência ao poder se dá através da criação de novas subjetividades, que surgem de práticas cotidianas de transformação. Na América Latina, isso pode ser visto na criação de novas formas de organização do trabalho, nas cooperativas e nos movimentos sociais que rejeitam a lógica do mercado e buscam formas alternativas de vida e de trabalho, pautadas pela solidariedade, cooperação e justiça social.A resistência latino-americana também é marcada pela busca por soberania, tanto em relação às forças externas (como as potências imperialistas) quanto em relação aos interesses econômicos globais. A subjetividade emancipatória latino-americana, portanto, se constrói não apenas no campo das ideias, mas também na luta concreta por justiça econômica, direitos humanos e transformação social.

Os movimentos sociais mencionados no resumo são grupos e coletivos que buscam resistir às estruturas de poder neoliberal na América Latina e promover a transformação social e a justiça. A seguir, apresento uma descrição de alguns desses movimentos e como e onde eles atuam:

1. Movimentos Indígenas:
Os movimentos indígenas na América Latina têm desempenhado um papel fundamental na resistência ao neoliberalismo, especialmente em países como Bolívia, Equador e México. Esses movimentos buscam a reconhecimento da identidade e dos direitos territoriais dos povos indígenas, frequentemente ameaçados por projetos de exploração de recursos naturais, como mineração e agricultura. Em muitos casos, eles também combatem a imposição de modelos econômicos neoliberais que desconsideram os saberes e práticas tradicionais indígenas.
Os movimentos indígenas organizam protestos, marchas e ocupações de territórios. Eles defendem políticas públicas que respeitem a autonomia e a soberania dos povos indígenas, além de buscarem a reconstrução de suas culturas e modos de vida. Atuam principalmente nas regiões andinas da Bolívia e do Equador, e em outras áreas da Amazônia, como no Brasil e na Colômbia.

2. Movimentos Feministas: Os movimentos feministas na América Latina têm se intensificado nas últimas décadas como resposta às desigualdades de gênero e à violência estrutural contra as mulheres, agravada por políticas neoliberais. Esses movimentos atuam na luta por direitos reprodutivos, igualdade de gênero no mercado de trabalho, acabando com o feminicídio, e na autonomia política e econômica das mulheres. Organizam marchas, manifestações e campanhas, como as famosas Marchas das Mulheres e o movimento Ni Una Menos, que exige políticas públicas para erradicar a violência de gênero. Também buscam garantir direitos reprodutivos, como o acesso ao aborto legal e seguro. Atuam em vários países, incluindo Argentina, Chile, México e Brasil. O movimento Ni Una Menos, por exemplo, é forte na Argentina, e as manifestações feministas ganharam grande visibilidade em outros países da América Latina.

3. Movimentos de Trabalhadores: Os movimentos de trabalhadores na América Latina têm resistido à precarização do trabalho e à flexibilização das leis trabalhistas promovida pelo neoliberalismo. Eles lutam pela garantia de direitos trabalhistas, como salários dignos, segurança no emprego, condições de trabalho justas e a manutenção dos direitos sociais. Atuam com a realização de greves gerais, ocupações de fábricas e outras formas de resistência, incluindo a organização sindical. Esses movimentos também buscam a democratização das relações de trabalho e a luta contra o desemprego estrutura, especialmente em países como Brasil, Argentina, México, Chile e outros países da América Latina, onde os trabalhadores enfrentam altos índices de precarização e desemprego.

4. Movimentos por Direitos Humanos: Os movimentos por direitos humanos na América Latina desempenham um papel crucial na luta contra as violências do Estado e as injustiças sociais. Eles atuam no enfrentamento da violência policial, desaparecimentos forçados, e as violações cometidas contra grupos vulneráveis, como as comunidades negras e populações LGBTIQAPN+. Esses movimentos uscam visibilidade para as violações de direitos humanos, pressionando os governos por justiça e reparações, além de realizar protestos pacíficos e ações jurídicas. Muitos desses movimentos também atuam no apoio aos familiares de vítimas de abusos e na promoção de políticas públicas de igualdade e não discriminação.
Atuam de maneira significativa na Colômbia, México, Guatemala, e em outros países que enfrentam altos índices de violência, especialmente relacionada ao narcotráfico e ao controle social pelo Estado.

5. Movimentos Sociais Urbanos e de Moradia: Esses movimentos combatem os impactos do neoliberalismo nas cidades latino-americanas, onde o processo de urbanização e gentrificação tem resultado em uma crescente exclusão social e deslocamento de comunidades populares. A construção de grandes empreendimentos privados, frequentemente favorecida pelo Estado, tem levado à privatização do espaço público e ao aumento das desigualdades. São movimentos que organizam ocupações de terrenos e edificações, além de protestos contra o aumento do custo de vida e a especulação imobiliária. Exigem políticas públicas de habitação acessível e direito à cidade para todos os cidadãos, especialmente as populações mais vulneráveis. São movimentos  particularmente ativos no Brasil, Argentina e Chile, onde o processo de urbanização e especulação imobiliária tem afetado negativamente as comunidades periféricas.

6. Movimentos LGBTIQAPN+
Os movimentos LGBTIQAPN+ lutam contra a discriminação de gênero e orientação sexual, buscando a igualdade de direitos para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero ou sexualidade. Esses movimentos têm sido fundamentais para a conquista de direitos como o casamento igualitário, a adoção por casais homoafetivos e a proteção legal contra crimes de ódio. Organizam eventos como a Parada do Orgulho LGBT+, realizam campanhas de conscientização sobre os direitos dessa população e lutam contra o preconceito institucionalizado e estão presentes em toda a América Latina, com destaque para o Brasil, Argentina e México, que têm avançado significativamente na legislação de direitos LGBTI+.

7. Movimentos de Soberania Alimentar
Os movimentos de soberania alimentar lutam contra a dominância do agronegócio e o modelo neoliberal de produção agrícola que prioriza o lucro em detrimento da segurança alimentar e dos direitos dos camponeses. Eles defendem a produção de alimentos de maneira sustentável e justa, respeitando a cultura local e promovendo sistemas alimentares comunitários.
Defendem o agroecossistema como alternativa ao modelo de monocultura, promovem a agricultura familiar e o comércio justo e se opõem ao uso de transgênicos e agroquímicos. Os movimentos de soberania alimentar atuam principalmente no Brasil, Argentina e em outros países que enfrentam a expansão do agronegócio, como na Bolívia e na Guatemala.

Esses movimentos sociais têm sido essenciais para a resistência ao neoliberalismo na América Latina, buscando formas alternativas de organização social e política que promovam a solidariedade, a justiça social e os direitos humanos. Eles agem no âmbito local, nacional e regional, e sua atuação é crucial para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa. No entanto, cada um dos movimentos sociais descritos pode, em teoria, assumir uma postura neoliberal ao adotar práticas ou princípios que se alinham com a lógica do mercado e da competição, ao invés de buscar a transformação social profunda. A seguir, descrevo como isso poderia acontecer e os riscos que estariam associados a essas posturas dentro de cada movimento:

1. Movimentos Indígenas
A adoção de uma postura neoliberal pelos movimentos indígenas pode ocorrer se, ao invés de lutar pela autonomia e pelos direitos territoriais, esses movimentos começarem a aceitar a privatização de terras ou a individualização das terras indígenas. Esse modelo poderia ser impulsionado por uma lógica neoliberal que enxerga os territórios indígenas como ativos de mercado, ao invés de espaços de resistência cultural e territorial.Se os movimentos passassem a aceitar concessões territoriais para empresas privadas, ou se priorizassem a inserção de povos indígenas no mercado global, deixando de lado a defesa de sistemas coletivos de gestão territorial, eles estariam subvertendo sua própria causa. São diversos os riscos, destacando-se a perda de identidade cultural, a submissão dos povos indígenas a um sistema que não respeita suas práticas ancestrais e a destruição de ecossistemas essenciais para sua sobrevivência.

2. Movimentos Feministas
 A postura neoliberal pode ser adotada quando o movimento feminista se concentra exclusivamente em emancipação individual ao invés de buscar a transformação coletiva das estruturas sociais. Um exemplo disso seria se os movimentos começassem a tratar a igualdade de gênero como uma questão individual, por meio de políticas que se limitam a promover o acesso das mulheres ao mercado de trabalho em condições desiguais, sem questionar as estruturas de poder, como o patriarcado e a exploração laboral.Aceitando a inserção das mulheres em postos de poder ou posições no mercado de trabalho sem uma crítica profunda ao sistema de desigualdade estrutural, e sem um enfoque nas questões de classe, raça e território, eles estariam cedendo à lógica neoliberal. São diversos os riscos, destacando-se a mercantilização do feminismo, transformando-o em uma marca que busca apenas a ascensão de mulheres em posições de poder dentro do sistema capitalista, ao invés de promover uma mudança radical que beneficie todas as mulheres e questione as desigualdades sistêmicas.

3. Movimentos de TrabalhadoresO risco de uma postura neoliberal dentro dos movimentos de trabalhadores surge quando há uma adoção de práticas que promovem a individualização dos direitos trabalhistas. Ao invés de lutar por direitos coletivos e melhorias nas condições de trabalho para todos, o movimento poderia começar a buscar apenas a competitividade no mercado de trabalho, incentivando a autossuficiência dos trabalhadores em vez de um pacto coletivo que lute contra a precarização do trabalho. Se os sindicatos ou coletivos de trabalhadores começassem a negociar direitos em termos de flexibilidade no trabalho ou aceitassem políticas de "meritocracia" para ascensão dentro do trabalho, ao invés de uma luta pela igualdade de condições, isso sinalizaria a adoção de uma postura neoliberal. São diversos os riscos, destacando-se a fragmentação da classe trabalhadora, a concorrência entre os trabalhadores, e a desvalorização das lutas coletivas, enfraquecendo as resistências estruturais ao capitalismo, como já vem acontecendo no Brasil.

4. Movimentos por Direitos Humanos

A postura neoliberal no movimento de direitos humanos pode ocorrer quando a defesa dos direitos se limita à cidadania formal e à inclusão no mercado sem um questionamento das causas estruturais das violações de direitos humanos. Nesse contexto, o movimento poderia passar a defender a integração de minorias no sistema econômico neoliberal sem questionar a distribuição desigual de recursos e poder. O movimento poderia aceitar a "inclusão" de populações marginalizadas em termos puramente econômicos, como garantir o direito ao trabalho, mas sem questionar as condições sociais e econômicas que perpetuam a desigualdade. São diversos os riscos, destacando-se a naturalização da desigualdade e a individualização das questões de direitos humanos, afastando-se das lutas coletivas por justiça social e equidade.

5. Movimentos Sociais Urbanos e de MoradiaA adoção de uma postura neoliberal nos movimentos urbanos pode acontecer se esses movimentos começarem a aceitar soluções como o mercado imobiliário para resolver os problemas habitacionais, com a privatização de espaços urbanos ou a promoção de políticas que priorizam parcerias público-privadas para construção de moradia. Caso esses movimentos se alinhassem com o conceito de "habitação como mercadoria", ao invés de defendê-la como um direito fundamental, estariam cedendo ao neoliberalismo.São diversos os riscos, destacando-se a gentrificação das áreas urbanas, o deslocamento de comunidades de baixa renda e a perda de espaços públicos essenciais para o bem-estar social e coletivo.

6. Movimentos LGBTIQAPN+

O risco de uma postura neoliberal nesse movimento ocorre quando ele adota uma perspectiva que se limita à "inclusão" no mercado ou a direitos civis sem uma mudança estrutural nas relações de poder que perpetuam a opressão. Isso poderia ocorrer se o movimento LGBTIQAPN+ focasse exclusivamente na igualdade de casamento e no direito ao trabalho, sem questionar as estruturas mais amplas de opressão e discriminação. Caso os movimentos passassem a tratar os direitos das pessoas LGBTIQAPN+ como uma questão de consumo ou imagem corporativa e aceitassem que a aceitação venha apenas no âmbito do mercado, sem desafiar o sistema patriarcal e heteronormativo de poder. São diversos os riscos, destacando-se a mercantilização da identidade LGBTIQAPN+, onde questões essenciais de identidade e autonomia seriam tratadas como produtos de consumo, ao invés de questões de igualdade e cidadania.

7. Movimentos de Soberania Alimentar

A postura neoliberal dentro dos movimentos de soberania alimentar pode ocorrer quando esses movimentos passarem a apoiar o uso de tecnologias agrícolas neoliberais ou o agronegócio como soluções para a segurança alimentar, sem questionar os impactos ambientais e a desigualdade na distribuição de alimentos. Caso os movimentos defendessem um modelo agrícola baseado em eficiência e lucratividade, ao invés de promover sistemas de produção mais sustentáveis e socialmente justos, estariam cedendo à lógica do neoliberalismo. São diversos os riscos, destacando-se a destruição ambiental, o agronegócio concentrando a produção de alimentos e a perda de controle das comunidades sobre os recursos naturais. Esses movimentos, se tomados pela lógica neoliberal, correm o risco de individualizar suas causas, priorizando a inclusão no sistema capitalista ao invés de questioná-lo. Em vez de transformações profundas nas estruturas de poder e nas relações sociais, os movimentos poderiam se tornar meras engrenagens dentro do próprio sistema que buscam combater, revertendo as conquistas históricas e desvirtuando o seu propósito original de emancipação e justiça social.

Referências principais
Dussel, E. (2008). O marxismo na América Latina. Editora Zahar.
Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. Editora Vozes.
Harvey, D. (2014). O enigma do capital e as crises do capitalismo. Boitempo.- Sader, E. (2016). O neoliberalismo e suas consequências na América Latina. Editora Boitempo.
Standing, G. (2011). O precariado: A nova classe social em risco. Boitempo.