A Fantasia Cisfeminina do Direito

A formação no Curso de Direito nos dá uma promessa muito linda: a promessa de Justiça. Seja uma justiça interpessoal ou uma justiça social. Passamos a imaginar que a nossa formação nos dá instrumentos para fazer justiça e, com isso, somos capazes de fazer até generalizações como "salvar o mundo", "libertar as pessoas", "conseguir emancipação da sociedade", e tantas outras expressões de impacto e que justificam a nossa atuação.


Outras pessoas, que não são da área do direito, também acreditam nisso. Buscam o Judiciário para fazer justiça e resolver os problemas de sua vida ou da sua comunidade. Extravasam a sua necessidade de vingança no senso de justiça… não é por menos que estudamos sobre vinganças privadas, vingança pública e constituição do Estado.Muitas pessoas nos procuram para solucionar seus problemas: problemas de ordem econômica, psicológica, relacional. E, de alguma forma, têm razão: nós sabemos como o sistema estatal funciona. 


De algum modo, compreendemos os caminhos legais de como fazer as coisas acontecerem. Mas as coisas não acontecem porque é o certo ou o ético a ser feito: acontecem porque o Estado contém todo o arsenal de violência legitimado institucionalmente para impor uma determinada decisão. A imposição de algo é violência; a diferença é que a imposição do Direito é uma violência linguística (no mínimo) com legitimação social. Às vezes, essa decisão é considerada a mais ética, ou justa, ou acertada; às vezes, não.Como uma estrutura potente, o Estado consegue impor medidas para ajustamentos de condutas e repressão daquilo que é entendido como ilegal ou incorreto. 


Na verdade, são pessoas que justificam ações, em nome do Estado.Assim como houve, por exemplo, uma grande operação para apreender sprays de pichadores em Florianópolis, é possível imaginarmos uma grande operação prevenir e combater a violência contra as mulheres na cidade. Seria possível também pensarmos em planejamento público para empregabilidade de pessoas trans? Seria possível pensarmos sobre ações pedagógicas antirracistas nas instituições? Na proteção ao meio ambiente no norte da Ilha de Florianópolis? Seria? Ou não? Para onde se orientam as decisões do Estado?Essas perguntas objetivam trazer à consciência de vocês um pouco de realidade; especialmente às pessoas que atuam no e com o Direito.


O princípio da realidade, pela psicanálise, nos dá a noção dos aspectos externos a nós, mas que se comunicam com a nossa imaginação. Deixamos de lado a fantasia de um mundo maniqueísta, e percebemos o que, de fato, acontece na realidade. Para isso, é necessário uma certa medida de amadurecimento.No campo jurídico, é necessário amadurecer para entender que as promessas que nos fizeram na graduação são fantasias que justificam nossa atuação e nossa postura desconectada com a realidade. Isso impede a chance de pensarmos em mudanças possíveis na realidade.Uma fantasia comum é a criminalização de condutas resolve tudo. Spoiler aos fantasiosos: não resolve.


Conforme defendi em minha tese e venho apresentando como proposta de protocolo de tratamento a violências, a criminalização, pura e simples, não basta. É necessário implementação de: (a) medidas de prevenção, com ações pedagógicas; (b) de proteção às vítimas, com acolhimento institucional multifatorial; (c) e persecução, que inclui a previsão criminal, sim, mas também o processamento adequado de responsabilização da pessoa que pratica a violência; (d) políticas públicas de reflexão sobre violências; (e) investigações periódicas sobre a ocorrência de atos de violência.É muito trabalho a ser feito? Sim. A realidade é trabalhosa e complexa; são as fantasias que costumam ser mais simples, mais fáceis de elaborar e de impor com violência.


A criminalização das violências específicas contra diversos grupos vulnerabilizados - ou seja, a previsão de tais condutas como crime - não muda efetivamente a realidade das violências multidimensionais contra essas pessoas. Há uma promessa jurídica que, na realidade, não se efetiva. O racismo, a transfobia, a homofobia, a lesbofobia caracterizam condutas que se atualizam nas diversas relações, apesar da criminalização. Sobre isso, inclusive, não digo que a criminalização é ineficaz, mas é necessário reconhecer o seu efeito sobre a realidade. Para isso, precisamos de pesquisas sérias, e não de mais palavras de profecias jurídicas.A criminalização dessas condutas e seu panorama de realidade pode ser útil para pensarmos em fazermos diferente nesses casos e em outros relacionados à violência contra as mulheres. 


Que pensemos em uma política pública séria, constituída por uma equipe multidisciplinar, amparada em investigações científicas antidiscriminatórias e inclusivas a todos os grupos vulnerabilizados. Muito trabalho? Sim.É um trabalho que não se centra em uma pessoa, ou uma mulher, que venha a nos salvar de todas as mazelas sociais, do alto de sua onipotência acadêmica ou jurídica. Essa mulher não existe; o que existe é uma fantasia de salvação, geralmente centrada na branquitude e na cisgeneridade. 


Que não deixemos que a fantasia cisfeminina de salvação, criada a partir da usurpação neoliberal dos feminismos, nos impeça de olhar para a realidade.