Durante a disciplina de “Direito e Feminismos”, que é ministrada por mim no Curso de Graduação em Direito da UFSC, peço, como forma de atividade avaliativa, para minhas alunas entrevistarem uma mulher presente em suas vidas, podendo ser da família ou do âmbito profissional.Para essa entrevista, minhas alunas seguem um roteiro de 10 perguntas, envolvendo questões relacionadas à experiência daquela mulher no mundo, desde sua vivência familiar, no campo educacional, na área profissional, até percepções, projetos e sonhos. Realizadas as entrevistas, as alunas apresentam-na em sala de aula.
O objetivo dessa atividade era identificarmos, a partir da realidade das alunas, uma cartografia dos lugares das mulheres entrevistadas e, assim, localizarmos padrões e regras institucionais e culturais sobre o que é ser mulher (a pergunta em disputa dos Feminismos). Outra proposta é conseguirmos promover um sentido de localização das próprias alunas na sua própria vida, a partir da referência da história de uma mulher próxima a si. Finalmente, o objetivo ulterior é conseguir definir estratégias de ação, resistência e recusa nessas histórias.Em razão da riqueza das histórias trazidas e pela importância de elas não serem resumidas em um determinado tempo de aula, a atividade, que era para ter durado duas semanas, durou quase dois meses. Em algumas aulas, ouvimos cinco, seis entrevistas/histórias; em outras aulas, intercalei, a partir dos padrões identificados, a ministração do conteúdo sobre movimentos feministas, teorias feministas e contextualizações necessárias do Sul Global.
Das mulheres entrevistadas, destacaram-se as mulheres que exercem trabalhos de cuidado: aquelas mulheres, amigas da família, que apoiaram as alunas quando essas vieram para Florianópolis; as mulheres que são apoio e suporte emocional; e as mulheres que são avós e, especialmente, as mulheres que são mães. Em quase todas as aulas, nos emocionamos. Nas narrativas sobre maternidade, foram incansáveis os relatos sobre mulheres que escolhem exercer a função de cuidado do outro: dos irmãos, do marido, da filha, da mãe. Muitas vezes, deixando de lado seus próprios sonhos; outras vezes, tentando dar conta de jornadas extenuantes para conseguir exercer o cuidado, a profissão e o trabalho doméstico. Mas sempre com a narração de um sonho resistido e uma projeção: “que o outro seja salvo”.
Ser mãe, ou exercer a maternidade, nesses termos, em uma sociedade tão cruel com as mulheres, parece ser uma oração diária, direcionada a quem se ama, e que quase esquece de si mesma no final. E não estou aqui tentando romantizar a opressão cotidiana pela qual as mães passam de todos os lados; estou aqui reconhecendo todo o esforço que vi minha mãe fazer para que eu não passasse pelas situações que ela passou, e reconhecendo toda a narrativa trazida pelas minhas alunas, que são filhas e são cuidadas por mulheres em função de cuidado.
Nos lugares de filhas, portanto, nós as vemos, mães.
Frente às discriminações sociais, institucionais e interpessoais, o esforço dessas mulheres ultrapassa o âmbito individual e entra em um campo mais coletivo. Nos movimentos sociais, temos exemplos de diversos movimentos feministas organizados por mães, que lutam pela memória coletiva e pela luta por justiça social. Nesses movimentos, percebemos, duas intenções centrais e sobrepostas: salvar o outro (os vivos) e lembrar o outro (os mortos e desaparecidos) — ambas atravessadas por um profundo sentido de responsabilidade e afeto político.
Como importante referência internacional da América Latina, as Mães da Praça de Maio (Asociación Madres de la Plaza de Mayo) formam um grupo constituído por mães argentinas que se organizaram para protestar contra a repressão e os desaparecimentos durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983). Elas se reuniam semanalmente na Praça de Maio, em Buenos Aires, buscando notícias sobre seus filhos desaparecidos e exigindo justiça. São reconhecidas internacionalmente por organismos de proteção de Direitos Humanos.No Brasil, os movimentos das mães reconfiguram a maternidade como forma de resistência pública. As Mães de Acari, por exemplo, são um movimento de mães formado após o “Massacre/Chacina de Acari” (1990), no Rio de Janeiro, em que 11 jovens foram sequestrados e assassinados. As mães, buscando justiça e a verdade sobre o paradeiro de seus filhos, formaram um grupo que se tornou um símbolo da luta por justiça e pela memória das vítimas, buscando esclarecer o que aconteceu com seus filhos e responsabilizar os culpados. Em 2024, Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Estado brasileiro pela violação dos direitos humanos.
As “Mães pela Diversidade”, atuantes desde 2014, lutam por respeito aos nossos filhos lésbicas, gays, trans, travestis, bissexuais, assexuais e mais, denunciando violência, rejeição familiar e discriminação e acolhendo mães e pais de pessoas LGBTQIA+. O movimento nacional surgiu com a reunião de mães preocupadas com a violência e com o preconceito contra seus filhos e filhas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e, atualmente, atuam também “na sensibilização de agentes de saúde, do judiciário e do legislativo, e na divulgação de informações e depoimentos que tentam transformar a sociedade em um ambiente mais respeitoso para nossos filhos/filhas/filhes”.O Mães de Maio, em São Paulo, é um movimento social em São Paulo que luta pela justiça e memória das vítimas da violência estatal, especialmente após os Crimes de Maio de 2006. O grupo é formado por mães, familiares e amigos de pessoas que foram assassinadas ou desaparecidas durante uma onda de violência em 2006. O movimento busca investigar e denunciar os casos de violência estatal, além de garantir que as vítimas sejam reconhecidas e que as famílias recebam apoio. A luta envolve a memória, a verdade e a justiça às vítimas: 493 pessoas, das quais mais de 400 eram jovens negros ou pobres.
O Coletivo Mães de Manguinhos, no Rio de Janeiro, é um movimento social no Rio de Janeiro que reúne mães e familiares de vítimas da violência policial, com foco na luta pela memória, verdade, justiça e responsabilização dos agentes violadores. O coletivo busca apoiar as mulheres negras e seus familiares, oferecendo acolhimento, troca de experiências e fortalecimento coletivo, especialmente na elaboração do luto e na participação nas lutas sociais. Surge no contexto do aumento da violência policial no Rio de Janeiro, em particular durante a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. No Brasil, ainda, mães participam de outros movimentos, como grupos de mães relacionados à ditadura militar (1964–1985), que, embora menos destacados do que os similares em outros países da América Latina, como as Mães da Praça de Maio na Argentina, também foram relevantes nas denúncias do desaparecimento forçado, na defesa dos direitos humanos e na memória da resistência. Pelo mundo, ainda, outros movimentos de mães se destacam, como "Mães dos Desaparecidos de Ayotzinapa" (México) e as As Mães de Soweto, resistentes no contexto do apartheid na África do Sul.Os movimentos de mães revelam como o cuidado, o luto e a maternidade podem se tornar práticas políticas insurgentes. Ao articular memória, justiça e território, essas mulheres desafiam o Estado, o patriarcado e o colonialismo, acionando alianças fundamentais para os debates sobre direitos humanos, gênero e justiça global.
O luto, especialmente, promove efeitos importantes.Quando perguntamos, juntamente com Judith Butler, sobre quais vidas são choradas publicamente? ou sobre quais mortes são reconhecidas como perdas legítimas?, trazemos à consciência de que o luto não é apenas uma experiência individual, mas uma experiência coletiva profundamente política. As mães, ao transbordarem seus lutos para o espaço público ao chorarem seus filhos, rompem com narrativas oficiais que naturalizam ou tentam justificar a morte de suas filhas e seus filhos. Há a reivindicação da humanidade do outro, em que são reafirmados os valores inerentes àquelas vidas, forçando a sociedade a enxergar o que está indevidamente naturalizado — a morte evitável, a desigualdade estrutural, o racismo, o capacitismo, a homofobia, a transfobia.Esse luto também tem essa potência para criar redes de solidariedade e resistência, transformando a dor individual, que é percebida como compartilhada, em mobilização social. Assim, o luto público não apenas relembra os mortos, mas questiona as estruturas que os mataram e impulsiona a luta por justiça e memória.
Na nossa sala de aula, enquanto tecemos aquelas histórias de mulheres que não se organizaram ou se mobilizaram coletivamente, mas que se uniam em uma oração silenciosa de entrega, de cuidado e de sacrifício, encontramos também alguns rastros de culpa. Essa culpa, abraçada com uma lógica religiosa da oração, que trazemos aqui como título, envolve um conto enganador de que o que essas mães fizeram - e fazem - não teria sido o suficiente, ou o bastante, ou de uma forma perfeita a ponto de que seus planos de salvação desse outro dessem certo.Juntamente com as percepções e a gratidão das minhas alunas, o que posso dizer, como filha que é protegida diariamente pela oração de uma mãe que lutou a vida toda contra misoginia, contra a invisibilização, contra a violência rasteira da seta que voa de dia e da peste que assombra a escuridão, é: todo trabalho de cuidado foi, é e será percebido, reconhecido e valorizado. Mais do que isso: toda a fé de sua oração alimenta tão bem a nossa vida que nos orienta a um caminho de autonomia plena e de conhecimento, de si e dos outros.Ao falar de maternidade desobediente como forma de resistência pública (ocorrida no âmbito familiar ou no espaço coletivo), há risco de romantizar o sofrimento e reforçar o velho roteiro do sacrifício materno, tão exaltado a um sistema discriminatório colonial e patriarcal. No entanto, entendemos que o que essas mulheres fazem não é se sacrificar por amor ou por imposição moral, mas sim reivindicar a potência política do cuidado.Há um deslocamento da ideia do cuidado da lógica da abnegação para a da ação coletiva.
O que está em jogo não é a exaltação do sofrimento, mas a recusa em aceitá-lo como destino silencioso. Ao fazer do cuidado uma prática crítica e pública, as mães mobilizam-se como agentes de transformação — não porque devem cuidar, mas porque decidiram transformar a dor em denúncia, a memória em justiça e o afeto em linguagem de recusa e resistência.Vocês são vistas, suas orações são ouvidas - e respondidas.
Amém.
BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violência. Buenos Aires: Paidós; 2006