As redes sociais estão cheias de conteúdo dizendo como as mulheres devem se comportar e se relacionar. Da mesma forma, há muitos conteúdos sobre como os homens devem se comportar e como se relacionar também. Muitos desses comportamentos direcionados a homens e também a meninos se referem a um conjunto de símbolos de ódio contra tudo que possa ser caracterizado como feminino em nosso mundo. Assim, são nutridos sentimentos de ódio e aversão pelas pessoas que não sigam esse modelo de comportamento.
Essa série também tem gerado uma série de conteúdos sobre o tema "masculinidades". De todos esses conteúdo, o que julgo mais pertinente e de linguagem acessível (e estratégica) é o recorte do ator Stephen Graham, que interpreta o pai do adolescente da série.
Nesse vídeo rápido, ele diversas dimensões responsáveis pela produção de um "homem"nesse nível de violência: a família, a comunidade, a escola, a cultura como um todo. E ele faz isso questionando o seguinte: que tipo de conteúdo os adolescentes estão acessando? Em palavras formativas: com quais informações nossos meninos, adolescentes e homens estão sendo letrados?
Essa pergunta é muito pertinente e pode ser observada de diversos ângulos, mas aqui destaco em três: na família; na escola; no trabalho.
Com a linguagem hegemônica e a naturalização nefasta de uma linguagem conservadora, meninos, adolescentes e homens estão sendo formados com valores que representam essa ideologia. Na família, os meninos frequentemente são ensinados a reprimir emoções e demonstrar força de maneira agressiva, para demonstrar liderança e autoridade.
Isso pode acontecer por meio de frases como "homem não chora" ou "se bater, bate de volta". Além disso, há a normalização do controle sobre as mulheres da família—por exemplo, pais e irmãos monitorando as roupas ou amizades das irmãs, reforçando a ideia de que elas precisam ser vigiadas enquanto os meninos têm mais liberdade.
No ambiente escolar, a masculinidade é muitas vezes reforçada por meio da humilhação e do bullying, tudo isso com a omissão da escola. Os meninos aprendem que precisam ser dominantes e evitar qualquer comportamento considerado "fraco" ou "feminino". Além disso, há uma aceitação da cultura do assédio, onde ações como puxar o sutiã das meninas ou fazer comentários sexistas são minimizadas como "brincadeira".
Como exemplo da série, em uma cena, um grupo de meninos humilha um colega por ele ser sensível e o chama de "marica". Em outro momento, meninos fazem piadas de cunho sexual sobre uma professora, reforçando a objetificação das mulheres. Assim, o símbolo de "ser homem" é objetificar as mulheres e não demonstrar sentimentos.
Fora de casa e da escola, a cultura do bairro, das ruas e dos grupos de amigos também reforça a ideia de que a masculinidade está associada à dominação e ao desprezo pelo feminino. Muitos meninos aprendem desde cedo a valorizar comportamentos violentos e a tratar as mulheres como objetos de conquista. Ainda, quando se nutre a linguagem de empreendedor de si, altamente individualista, com foco no desempenha, pouco se importa pela forma com que o outro é tratado, desde que ele será útil para alcançar meu objetivo. Se não, ele é descartado.
Na série, um dos personagens mais influentes entre os garotos se gaba de quantas meninas "pegou" e incentiva os amigos a fazerem o mesmo, tratando o afeto como sinal de fraqueza e promovendo uma visão utilitária das mulheres. Aqui, a objetificação das mulheres é pela linguagem de "uso" delas, como seus corpos fossem destinados tão somente para o prazer dos homens. Escapa-se dessa linguagem entender a mulher como um ser humano, que tem autonomia e escolha sobre seu prazer.
Essas práticas e ensinamentos ajudam a perpetuar ciclos de violência e desigualdade, pois criam homens que não sabem lidar com frustração, rejeição ou emoções sem recorrer à agressividade. A série faz um bom trabalho ao mostrar como essas ideias são internalizadas e, às vezes, questionadas por alguns personagens.
No campo acadêmico, os estudos que envolvem essa "formação dos homens" são os Estudos sobre Masculinidades. Uma referência desses estudos é a Raewyn Connell, que identificou 4 tipos de masculinidades no nosso meio:a hegemônica, a cúmplice, a subordinada e a marginalizada. Connell destaca que essas masculinidades não existem isoladamente, mas se relacionam de forma dinâmica, mantendo e transformando as relações de poder dentro da sociedade.
1. Masculinidade Hegemônica: é o modelo dominante de masculinidade, aquele que estabelece um padrão ideal de ser homem, associado ao poder, à autoridade e à subordinação das mulheres e de outras masculinidades. Essa masculinidade é frequentemente heterossexual, agressiva e competitiva, e valoriza características como força física, racionalidade e controle emocional. Exemplo: O empresário de sucesso que exerce autoridade no trabalho e em casa, reforçando seu papel como provedor e chefe da família, mantendo uma postura emocionalmente distante.
2. Masculinidade Cúmplice: refere-se aos homens que não necessariamente incorporam todas as características da masculinidade hegemônica, mas que se beneficiam dela e a sustentam. Eles não desafiam diretamente o modelo dominante e, muitas vezes, participam de comportamentos que reforçam o sistema patriarcal. Exemplo: O homem que não pratica diretamente violência contra as mulheres, mas ri de piadas machistas, se omite diante de situações de assédio ou apoia amigos que reproduzem comportamentos agressivos.
3. Masculinidade Subordinada: essa masculinidade está associada a grupos que são marginalizados ou inferiorizados dentro da hierarquia de gênero, principalmente homens gays, mas também aqueles que fogem do padrão tradicional de masculinidade. Esses homens são frequentemente alvo de discriminação, pois sua forma de existir ameaça o ideal hegemônico. Exemplo: Um homem homossexual que enfrenta preconceito no ambiente de trabalho por não se encaixar na expectativa tradicional de masculinidade.
4. Masculinidade Marginalizada: relaciona-se com homens que não têm acesso ao poder da masculinidade hegemônica por conta de fatores como raça, classe ou deficiência. Esses homens podem ser excluídos da masculinidade dominante, mas ainda assim reproduzir comportamentos machistas dentro de suas próprias comunidades. Exemplo: Um homem negro que enfrenta racismo estrutural e é impedido de ocupar posições de poder na sociedade, mas ainda sustenta valores patriarcais em suas relações pessoais.
Práticas como violência, competitividade extrema, silenciamento da vulnerabilidade e objetificação das mulheres são práticas associadas a uma simbologia masculina. No entanto, essas atitudes não são naturalmente dos homens, mas sim formas de socialização que afastam os homens de uma vivência plena da própria humanidade. Quando naturalizamos essas condutas como "coisas de homem", reforçamos a ideia de que elas são inquestionáveis, o que impede que possamos criticá-las e transformá-las.
Um homem que rejeita sua vulnerabilidade porque teme ser visto como "fraco" está, na verdade, bloqueando um processo essencial de amadurecimento. Esse bloqueio pode levar a compensações destrutivas, como agressividade excessiva ou sensação de vazio existencial. São esses homens que estão sendo produzidos hegemonicamente.
Ao reconhecer que essas práticas são expressões de uma cultura específica – e não determinações naturais –, podemos abrir espaço para práticas mais saudáveis e inclusivas. E essa responsabilidade ética é de toda sociedade, destacando família, escola, universidade, trabalho, inclusive na dimensão das redes sociais.